11 novembro 2010

Brumas




Este conto, na verdade, é o histórico de um personagem ambientado no cenário de Ravenloft. No final das contas a campanha não durou quase nada e eu gastei mais tempo fazendo o histórico do que jogando, mas gostei tanto do conto que valeu a pena do mesmo jeito.





*  *  *

Neblus

A chuva fina mantinha seu reinado na cidade de Neblus. O céu, assim como o espírito do lugar, era sempre cinza. Muitos já não se importavam se a garoa era o prenúncio de um raro e ameno sol ou se precederia uma sombria e barulhenta tempestade, tudo o que podiam fazer era prosseguir com suas vidas enquanto a chuva fosse fina o suficiente. Em Neblus, o clima refletia o coração das pessoas. Em uma terra tão marcada pela maldade, era comum que esperanças fossem destroçadas diariamente e que as expectativas de melhoras não passassem de sonhos apagados.

Combatendo este derrotismo contagiante como uma praga, erguia-se a igreja de Ezra. O templo situava-se no extremo norte da cidade e sua arquitetura grandiosa lembrava um pequeno forte. Nos quartos rústicos encontravam-se diferentes tipos de adoradores. Pregadores da senhora das brumas tinham ali um repouso intermediário entre suas andanças. Clérigos mais tradicionais faziam do templo sua moradia e recebiam diariamente os que precisavam de consolo espiritual. Ali, seres com a alma perdida ou dilacerada encontravam a cura, pois a guardiã das brumas recebia bem os novos fiéis.

No entanto, mais triste do que uma alma acinzentada, é uma alma reluzente que aos poucos perde o brilho e pode até mesmo enegrecer-se em meio a revolta. Era exatamente o que acontecia com um dos servos mais devotos de Ezra, o frade Columba. Tendo sido iniciado no culto a Ezra muito jovem, Columba sempre exibira uma fé radiante e inspiradora. Muitos dos fiéis haviam sido cativados por ele e sua ascensão clerical foi acompanhada pelo aumento da influencia da Igreja no país.

O tempo se passou e Columba tornou-se um sábio respeitado. Sua calvície dividia espaço com uma meia lua de cabelos brancos evidenciando-o como um dos membros antigos e a combinação do rosto rechonchudo e barriga proeminente dava-lhe uma agradável expressão patriarcal. Contudo, o céu de Neblus era sempre cinza e por muitas vezes negro. Não tardou para que até mesmo a fé de Columba fosse posta em cheque. Após tantos anos vivendo em Ravenloft, o frade começava a indagar se sua fé era o suficiente para um lugar tão vil. Em seu íntimo questionava-se se Ezra havia abandonado aquela terra, se havia desistido após ver tamanha maldade nas pessoas. Se seus pensamentos eram certos ou não, não importava. A fraqueza crescente em suas próprias crenças estreitou seus laços com o divino, a fé não comporta dúvidas, e, aos poucos, seus poderes foram se esvaindo.


Celanil

Se houvesse no plano material alguma terra que refletisse os reinos celestiais, esta seria Celanil. Clima, fauna e flora convergiam em um hábitat perfeito e harmonioso. Em meio a árvores centenárias e relvas cuidadosamente planejadas estava Celanil. A cidade anciã, cujos únicos senhores por séculos eram os elfos, era isolada por grandes extensões de florestas e, após, por um relevo acidentado que circundava a região como um grande escudo natural.

Diferentemente de muitas outras raças daquele mundo, os elfos medem sua existência em séculos. A longevidade de suas vidas era refletida em seus costumes. Eles raramente fazem algo apressadamente e sua paciência e perícia conquistada através da prática extensiva podem ser notadas desde a roupa que usam, com tecidos finos e trabalhados por meses, as suas armas, com lâminas tão afiadas que parecem ter sido marteladas mil vezes, e na sua magia, executada através do estudo exaustivo de línguas tão antigas quanto o próprio tempo.

Os habitantes de Celanil sempre prezaram por sua individualidade. Não há, como poderia se esperar, um estereótipo racial. Alguns elfos nascem para a caça, outros para a música e outros para a magia. Se após duzentos anos explorando uma das facetas de sua cultura um elfo quiser optar por outro caminho, nada o impede. Contudo alguns caminhos são mais penosos que outros. Aprender a arte da magia requer uma cautela adicional se comparada ao aprendizado da arte da harpa, por exemplo. E nenhum outro caminho era tão árduo quanto o aprendizado adquirido no templo dos solares. Assim como na casa das três luas, onde a arte arcana era ensinada, somente os aptos eram aceitos. Era esse o caminho que Guron, um jovem elfo começava a trilhar.

Antes mesmo que atingisse a puberdade o jovem surpreendeu amigos e familiares, com quem compartilhara seus vinte e três anos de idade, ao decidir seu caminho. A trilha do monge exigiria dedicação integral e muita disciplina, e nem mesmo sua amiga mais íntima, Tanandriel, que iniciava os estudos arcanos, adivinharia a vocação de seu amigo.

Anos tornaram-se décadas e Guron aprendeu a arte da força interior. Adestrando seu corpo para que se tornasse arma e armadura. Afiando a mente para que pudesse prever os ataques do inimigo através da intuição e da percepção aguçada. Fixando o conhecimento marcial de como conseguir o melhor de suas habilidades físicas através da técnica passada por muitas gerações.

O elfo tinha agora mais de setenta anos e era um discípulo aplicado. Os dias desgastantes e as noites meditando no chão duro eram testes de perseverança cada vez mais árduos. Não fossem os encontros escondidos com Tanandriel, teriam sido anos solitários. A elfa que crescera junto com Guron costumava estar sempre eufórica com algum feitiço novo aprendido e os dois se divertiam trocando histórias sentados nos galhos das árvores agigantadas. Ela o encantava mostrando o quanto tinha aprendido e ele se exibia como qualquer macho. Ela recitava palavras que ele não compreendia enquanto deixava com que pétalas de uma flor nativa caíssem fazendo com que o javali, cobaia de sua exibição, adormecesse tranquilamente. Ele a divertia ao demonstrar sua graça enquanto esquivava-se das presas do mesmo javali enfurecido por ter sido acordado sem precisar machucá-lo.

Foi em uma noite de primavera que ambos fizeram juras de amor e prometeram-se em segredo.

Tudo era perfeito em Celanil.


Neblus

Columba sentia a benção de Ezra cada vez mais tênue. Perguntava-se se era culpa de sua própria fraqueza ou se era mais uma evidencia do abandono de sua deusa. Em meio ao desespero de ver a razão de sua vida esvaindo-se, Columba sabia que tinha de fazer algo. Foi numa noite de tempestade que ele tomou sua decisão. Utilizando o pouco poder que lhe restava pediu proteção contra o frio e a chuva que castigavam a terra e pôs-se a caminhar para o norte sozinho.

A localização da igreja de Ezra era estratégica. Havia limites territoriais em Ravenloft feitos pelas brumas que ninguém em sã consciência ousaria cruzar. As brumas faziam com que os mortais se perdessem por tempo incerto e havia lendas de criaturas espreitando em meio às névoas, aguardando que algum desavisado lhe servisse de alimento. Para qualquer outro, estas brumas seriam apenas outro mal que habitava Ravenloft, mas para os anacoretas, como eram chamados os clérigos de Ezra, esta era a demonstração suprema do poder da Guardiã das Brumas.

Foi com este raciocínio que Columba rumou para as brumas que limitavam o norte de Darkon. Caminhou por dois dias sem olhar para trás até que percebera que adentrara a área proibida. Não voltaria atrás. Tomado pelo desespero e pelo medo clamou por sua protetora.

- EZRA! POR MAIS DE QUARENTA ANOS EU LHE DEDIQUEI MINHA VIDA. ESPALHANDO SUA PALAVRA E SERVINDO-A DA MELHOR MANEIRA QUE PUDE. POR QUE ME ABANDONA NO MEU MOMENTO DE FRAQUEZA? POR QUE ABANDONA ESTAS TERRAS A SUA PRÓPRIA SORTE EM UM LUGAR COM TANTO MAL?


Percebendo que nada acontecia esperou por alguns instantes enquanto seu coração parecia querer furar o peito e deixou que seus olhos procurassem o caminho de volta. Estava perdido.


- SERÁ QUE NÃO CONSEGUE ENXERGAR A BONDADE DE SEUS FILHOS? O POTENCIAL PARA O BEM QUE TEMOS TODOS NÓS, MESMO IMERSOS NESSE MUNDO DE ESCURIDÃO!


Ainda sem uma resposta divina, Columba começava a ceder à raiva.


- SE É DE UM SACRIFICIO QUE VOCÊ PRECISA PARA PERCEBER QUE PODEMOS SEGUIR TEU EXEMPLO ME TOMA O CORPO! MAS APARECE E MOSTRA QUE AINDA NOS ESCUTA. Que escuta aqueles que te pedem auxílio...


Lágrimas escorriam do rosto de Columba enquanto ele sentava-se no chão. Ficaria ali e rezaria até que sua fé fosse renovada ou encontrasse seu fim. O que viesse primeiro.


Celanil

Até que chegou a fase do alinhamento, quando as três luas que percorriam o céu de Celanil se encontravam durante o dia e encobriam o sol. O evento grandioso acontecia a cada setecentos anos. O grande caçador, o guardião do conhecimento e o alto sacerdote se reuniriam na área dos lagos e todas as tribos se preparavam para a comemoração, pois dizia-se que os deuses tinham seus olhos sobre Celanil nesta época. Os elfos festejariam em agradecimento aos deuses pelo paraíso em que viviam. Guron aproveitaria a época para anunciar aos seus pais que apesar de novo, já tinha a sua escolhida e Tanandriel faria o mesmo. Ambos desejavam perpetuar sua felicidade.

No entanto, da mesma forma que não existe mal absoluto fora do inferno, não existe a pureza suprema fora dos céus. O poder sempre será uma das tentações mais perigosas, a sensação viciante era forte mesmo para os que ocupam o topo. E foi tomado pela cobiça e ansiando por transformar a cidade de Celanil em uma lenda viva conhecida como a mais poderosa cidade arcana, que o guardião do conhecimento traiu seus companheiros. Durante o mês do eclipse, as magias arcanas eram proibidas e os clérigos de Corellon, a mãe de todos os elfos, dedicavam-se ao jejum e rezavam em tempo quase integral. Tais rituais e restrições eram necessários devido a delicadeza que o eclipse trazia. Clérigos e magos tinham visões diferentes do que acontecia. Na visão dos devotos, Corellon visitava Celanil e poderia abençoar seu povo, caso gostasse do que via, ou castigá-los, se não sentisse gratidão por parte de suas crias. Os magos, que estudavam o fenômeno por séculos, tinham outra versão. Eles sabiam que nesta época haveria um estreitamento entre as barreiras que separam os diferentes planos. O eclipse marcava o auge do processo, quando as barreiras invisíveis estariam mais tênues. E foi sabendo disso que Khalidyr, o guardião do conhecimento, preparou o seu golpe. Quando o eclipse tivesse em si todos os olhares de Celanil, ele começaria o ritual que traria o poder para dentro de si e para seus irmãos.

O dia começava a apagar-se e os três líderes élficos estavam no centro do lago. Alguns caminhos estreitos de terra cruzavam a área coberta pela água dos lagos que refletia os céus e, em um círculo central, o guardião do conhecimento e o grande caçador se ajoelhavam ao redor do alto sacerdote. Dizia-se que a própria Corellon entraria em seu corpo e, usando-o como intermediário, abençoaria seus filhos. Quando o sol retirou seu ultimo brilho do céu o transe do alto sacerdote teve fim. Porem, o que se escutara em seguinte não era o que todos esperavam. A voz que ecoava no silêncio não era uma voz divina ou mesmo a voz do alto sacerdote, era a voz de Khalidyr em uma língua desconhecida pela maioria dos elfos. O grande caçador se levantara confuso, pensava que talvez Corellon estivesse utilizando o corpo errado, mas o alto sacerdote estava em transe ainda e possuía os olhos esbranquiçados.


- Khalidyr, você... O que esta acontecendo? – Perguntou o grande caçador segurando os ombros de Khalidyr. - Seus olhos estão se enegrecendo, irmão, fale comigo!

A incapacidade do grande caçador de perceber a maldade que crescia em Khalidyr foi sua ruína. Ele só precisava de mais uma coisa para terminar seu ritual, e foi pegando o elfo desprevenido que a adaga de Khalidyr encontrou o peito de seu amigo. Os demais elfos gritaram em horror e pânico e o barulho da corda de centenas de arco se tencionando vinha de todos os lados. A corpo do grande caçador murchava e de decompunha em uma velocidade sobrenatural ao passo que o mago se fortalecia. Khalidyr virava-se para o alto sacerdote, indefeso pelo transe. Flechas eram disparadas e algumas atingiram o corpo do mago sem causar efeito algum. Ele havia planejado por muito tempo e flecha alguma iria Pará-lo agora. Ele se posicionou atrás do sacerdote e gritou mais palavras incompreensíveis enquanto guerreiros corriam pela ponte de terra que cortava o lago. Uma tempestade nunca antes vista se formava em Celanil. Trovões destruindo casas suspensas anunciavam o fenômeno anti natural e o vento tornava a arquearia difícil. Suas palavras arcanas tiveram fim. Posicionou a adaga para o golpe final.


- Com apenas uma fração do seu poder, nos criaste. Hoje você deixa os céus e passa a exibir sua majestade de dentro de nós. Venha Corellon, nos entregue todo seu poder e seja um com seu povo.


A adaga rasgou o coração do sacerdote e o eclipse permaneceu. O mago sentia o poder penetrando seu corpo. A sensação maravilhosa do poder, poder inigualável como um mortal jamais deveria sentir. E a sensação o enlouqueceu, voando e disparando raios aleatoriamente ele se tornou parte da tempestade, longe da vista dos outros. Os lagos enegreciam-se como se estivessem tornando-se trevas e pariam pequenos olhos vermelhos em sua superfície. Os elfos corriam em pânico para a cidade.

Guron viu seus pais correndo para sua antiga casa e desesperou-se.

- Por que raios eles não estão indo para a cidade, os anciões são os únicos capazes de nos defender! – Praguejava Guron enquanto corria com Tanandriel. – Você vai para a cidade com os outros, eu vou atrás deles.

- Você está louco se acha que eu não vou com você. – E vendo que ele se exaltaria emendou. – E não perca tempo sequer pensando em me impedir, não é hora para isso.

Guron sabia que era uma péssima idéia. Ele teria que diminuir seu ritmo a uma velocidade que ela conseguisse acompanhar e se os donos daqueles olhos vermelhos saíssem do lago ele não conseguiria se concentrar com ela correndo perigo. Mas ela tinha razão, não havia tempo para isso e então, ele começou a correr.

A casa dos pais de Guron era um pouco diferente das outras casas. Temendo pela segurança de seu único filho, não quiseram uma tradicional casa suspensa nas árvores e preferiram a tranqüilidade da vila ao leste da região dos lagos com suas casas fincadas no chão. Posteriormente, quando tais cuidados não eram necessários, eles estavam apegados demais para mudar de residência. Agora a localização da vila era um problema que perturbava Guron. O caminho de volta para a cidade seria perigoso.

Podia-se ver a porta escancarada ao longe e quando adentraram na sala, Guron teve uma surpresa que lhe tirou o fôlego. Sua mãe tinha no rosto um sorriso eufórico e preocupado e nos braços um bebê élfico com menos de um ano.

- Nós iríamos lhe dar a notícia hoje. – Ela tinha lágrimas nos olhos. – Conheça Ethon, seu irmãozinho.

Guron estava em estado de choque e tardou a notar os braços estendidos do pai lhe entregando um objeto cilíndrico envolto em seda violeta.

- Sei que não é hora para rituais, mas não podemos esquecer quem somos mesmo nos tempos mais difíceis. Esta é sua primeira responsabilidade, Guron, a proteção de Ethon é dever de nós três e – Permitindo-se um pequeno sorriso. – Se os boatos forem verdadeiros, talvez de nós quatro. – a pele branca de Tanandriel corava. – Ela é sua agora, filho, use-a pelo bem de nosso povo.

Guron pegou a espada embainhada das mãos de seu pai em silêncio. Já tinha a visto várias vezes, mas jamais pudera sequer tocá-la. A espada era forjada a partir da prata sagrada com esferas de esmeralda cravejadas em sua bainha. Folhas de prata adornavam o cabo formando uma das obras mais belas que Guron conhecera, e agora ela era sua, assim como a responsabilidade por seu irmão.

Foi o barulho agourento e pesado como o sibilar de uma cobra gigante que o despertou. Criaturas de alguma forma monstruosas estavam do lado de fora da casa.

- Rápido, a saída dos fundos! – Sussurrou o pai de Guron.

Atravessaram a porta e viram o que causava os ruídos aterrorizantes. Vindo pelo caminho que Guron fizera estavam três criaturas bípedes. Tinham o dobro da altura de um elfo comum e possuíam mais músculos que o grande caçador. Escamas negras como as trevas encobriam sua pele e garras ainda mais escuras projetavam-se de seus dedos. Um deles estava agachado cheirando o chão, os outros dois encaravam o grupo de elfos com seus olhos vermelho faiscantes. Com um urro grotesco investiram pesadamente.

- Corram para a cidade! – Ordenou Guron.

As criaturas eram fortes, mas não tão rápidas, e até mesmo seus pais, que não possuíam treinamento na arte da guerra, conseguiam superá-los. Correram até que dois dos monstros reptilianos surgiram da direção contrária. Guron tomou a frente aplicando uma rasteira com o impulso de sua corrida no primeiro, que caiu desengonçado. O segundo avançava as garras em direção ao seu pescoço, mas o elfo conseguia prever seus movimentos rudimentares e o bloqueou com sua espada ainda na bainha. Ainda deitado golpeou o joelho do monstro com a sola de seus pés e ele caiu por cima do outro. Tanandriel conjurava alguma magia que fazia com que os três que os perseguiam escorregassem e demorassem a se levantar, como se houvesse limo em seus pés.

Tornaram a correr em desespero e faltava pouco para que alcançassem o portão leste de Celanil. Um último obstáculo os impedia de chegar à segurança. Dezenas de monstros começavam a se juntar nos arredores do castelo numa distância segura das flechas élficas. Se conseguissem passar por eles, estariam salvos. Guron olhou sua família por alguns instantes para que nunca desaparecessem de sua memória. Alisou o cabelo de sua mãe e de Tanandriel e beijou a testa de seu irmão.

- Pai, eu tenho a solução, mas o senhor precisa fazer exatamente o que eu disser. Não há tempo para discussões. Eu conheço um caminho secreto e subterrâneo para o templo dos solares perto daqui. Vou distraí-los e abrir uma passagem para vocês. Não olhem para trás, apenas corram para a cidade.

- Você não vai conseguir dar conta de todos eles, Guron! – Exasperou-se Tanandriel. – Deixe-me ir com você!

- Tanandriel! – Interrompeu Guron, com o tom mais autoritário que conseguia. – Sei que ainda não passamos pelas cerimônias, mas você já é parte da família para mim. Por favor, vá com meus pais e proteja meu irmão até que eu volte, não vou demorar.

Então, apressados pelo grupo que vinha atrás deles e sem nenhuma outra opção eles concordaram com Guron. O elfo correu em direção ao grupo de monstros que estavam em seu caminho e começou a lutar. Tanandriel repetia seu encantamento conseguindo mais algum tempo com os seus perseguidores. Guron era ágil e conseguia evitar a maioria dos ataques, mas seu braço tinha sido atingido fundo por uma das criaturas e ele não conseguia revidar direito. Seu objetivo, entretanto, havia sido alcançado, as criaturas estavam tão irritadas por não conseguirem trucidar aquela criatura frágil que se lançavam num combate cego, abrindo um espaço largo o suficiente para que os demais passassem enquanto o monge lutava.

- AGORA! VÃO! ENCONTRO COM VOCÊS LÁ DENTRO!

O grupo conseguiu passar tranquilamente, mas uma das criaturas arremessara uma pedra que atingira a mãe de Guron no calcanhar, fazendo com que o bebê caísse no chão. O pai pegou a criança e correu para levantar sua companheira. Aproveitando-se do atraso dos elfos dois reptilianos corriam num frenesi sanguinário em direção a eles e teriam certamente alcançado a mãe de Guron não fosse por Tanandriel. Com uma voz que ecoou assustadoramente ela pronunciou seus encantamentos e um jato de chamas rompeu de suas mãos. Os répteis tiveram seus olhos queimados e se contorciam no chão. Eles estavam salvos e sob a proteção dos arqueiros.

Aliviado pela segurança de seus queridos o elfo permitiu-se um breve sorriso e a dor vinda de seu calcanhar atingido pela cauda de uma das criaturas não o incomodava. Era hora de tentar sobreviver. Ele não conhecia passagem secreta alguma. Não tinha planos quando pensou em salvar sua família, apenas queria vê-los em segurança, nem que para isso precisasse se sacrificar. Agora, porém, pensava que talvez pudesse sobreviver. Ele era muito mais rápido que as criaturas, era preciso apenas de uma brecha na roda que o cercava.

Com um corte transverso e profundo em seu antebraço esquerdo ele conseguiu escapar por entre as pernas dos monstros. Teve sorte, mas não tanta. O caminho para a cidade estava definitivamente bloqueado e o único lugar que parecia livre para que corresse era em direção aos lagos. Não tinha opção, talvez se conseguisse uma boa distância as criaturas desistissem de persegui-lo e pudesse mudar sua rota.

Não foi o que aconteceu. Como se a fúria as tivesse deixado mais ágeis as criaturas o seguiam a uma distância constante. Por sorte não havia mais criaturas surgindo de dentro dos lagos, o eclipse começava a passar. Correu o máximo que pode margeando os lagos até que penetrou em uma neblina espessa. Podia ouvir ainda os passos pesados das criaturas o seguindo e fugiu. Não conseguiu acreditar que falhara em ouvir a criatura que o pegara desprevenido. Surgindo a sua frente, um dos reptilianos lhe derrubara com um soco na face. E novamente ele estava cercado. Ele, as névoas e as brumas.


- Em momento algum de minha existência após a morte eu me arrependerei do meu sacrifício, mas até que as suas vidas tenham fim, vocês se arrependerão desta luta.

Os reptilianos pareciam ter alguma inteligência e talvez tivessem entendido as palavras do elfo, pois um sibilo que lembrava vagamente uma gargalhada ecoou de suas gargantas.

Com um movimento único ele arremessou a bainha de sua espada na face de uma das criaturas e cortou a mais próxima. Para qualquer observador neutro pareceria que o elfo dançava enquanto lutava, esquivando-se dos golpes brutos e lentos e cortando membros e fazendo com que tripas fossem expelidas, tamanha a precisão e profundidade de seus cortes. Mesmo quando lhe tomaram a espada ele continuou a lutar tão graciosa e ferozmente quanto antes. Seus punhos acertavam juntas e nucas e seus dedos penetravam garganta e costelas como se fossem afiados. Seu corpo estava banhado de sangue e ele sequer percebia que uma névoa o envolvia e condensava-se, protegendo-o dos golpes que deviam encerrar sua luta.

Quando o combate teve fim ele ainda estava de pé, mas sabia que morreria. O sangue jorrava de suas feridas misturando-se com o líquido fétido que jorrara das criaturas em seu corpo. Ele cambaleou para o sul e por mais de uma vez sentiu que seu espírito tentava abandonar o corpo. Só conseguia sentir gratidão por seus entes queridos não tivessem que compartilhar o mesmo destino. Mas alguma coisa passava a ocupar seu coração juntamente com toda aquela gratidão, pois não há bondade suprema fora dos céus. Estava instalada a semente da vingança e sem mesmo que conscientemente soubesse, ele lamentava ter que morrer sem que fizesse que Khalidyr pagasse por seu crime.

Então em um último suspiro lembrou-se de seus pais, Tanandriel e de seu irmão. E tombou com um sorriso na face.



Neblus

Havia duas semanas que Columba estava sentado em meio à névoa. Mesmo acostumado com o jejum e com o pouco sono, seu corpo havia cruzado seu limite. Ao menos começava a acreditar que a lenda de monstros que habitavam a névoa era apenas uma lenda. Sabia que provavelmente não teria forças para voltar mesmo que soubesse o caminho e ainda assim, permaneceu sentado, rezando pela proteção de Ezra.

Então ouviu o barulho de algo caindo. Abrindo os olhos e cessando suas orações andou curioso em direção ao barulho. Pensou que talvez fosse uma criatura que daria um fim a sua vida. No entanto, o que viu lhe cessou os movimentos. Um jovem elfo loiro, com o corpo e as feições de um homem pouco mais velho que um adolescente estava caído e ensanguentado. Em sua mão direita uma espada longa de prata adornada com folhas de beladona de prata. Aquilo com certeza era um sinal de Ezra. As lágrimas surgiram nos olhos de Columba e ele percebeu que faltava algo para o símbolo ficar completo. Se o jovem carregasse um escudo de corpo de alabrasto seria óbvio demais, talvez Ezra gostasse de ser sutil. Foi então que Columba viu a figura como um todo. Ele próprio era o escudo. Era sua função proteger e cuidar daquele menino vindo das brumas. Retomado e fortalecido pela renovação de sua fé, Columba despejou a benção de Ezra sobre o corpo do estranho, rogando para que ainda houvesse alguma vida em seu corpo. Tratou das feridas e as curou magicamente. O elfo ainda estava desacordado, mas Columba tinha agora forças o suficiente para carregá-lo.

Guron acordou em um quarto feio e de concreto, mais parecia uma prisão. Ao seu lado um homem dormia sentado em uma cadeira.

Guron e Columba conversaram por horas e quando o frade percebeu que Guron havia feito um sacrifício por outros, assim como sua deusa fizera por toda a humanidade ao entregar sua mortalidade às brumas, ele disse que Guron fora salvo por ela. Mais de uma vez Guron tentou retornar a sua terra natal pelo caminho de onde viera, mas as brumas pareciam uma espécie de labirinto mágico sem paredes. Não tardou para que Guron começasse a acreditar nas idéias de Columba, faziam muito sentido e ele tivera uma prova pessoal dos poderes de Ezra. Ao que o frade contara este mundo era um antagônico do seu e que precisava de luz. Guron achou um exagero da parte de Columba quando ele lhe confessou acreditar que Guron fora trazido por Ezra para desempenhar algum papel importante em Ravenloft, mas não se recusou a realizar pequenas missões pela igreja.

Alguns anos se passaram e os dois tornaram-se bons amigos. Este mundo ainda era um lugar estranho para Guron, mas Columba lhe ensinara tudo o que sabia. Até que então, o tempo levou Columba daquela terra.
Tomado pelo desejo mútuo de espalhar o bem de Ezra pelo mundo, dando continuidade a vontade de seu mentor humano, trazendo “luz” para este mundo e de encontrar algum meio de retornar a Celanil, Guron partiu em peregrinação por Ravenloft.

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