12 janeiro 2012

Capítulo 2


Ainda com a manhã espalhando-se pela floresta como uma gigante e dourada teia de aranha, os três elfos partiram. Levavam consigo mochilas não muito pesadas, de modo que fizessem uma viagem mais rápida. Vallen achou estranho que a gata continuasse a seguir Finarfim, mas ela haveria de abandonar o grupo quando se distanciassem muito de casa. Após não muito tempo caminhando para o oeste, Finarfim parou a marcha, pensativo.



- Devíamos seguir rumo ao norte primeiro. - Sugeriu Finarfim. - Não sabemos exatamente onde os orcs estão, mas como foram vistos à sudoeste, devíamos seguir a noroeste.
- Isto nos custaria mais três dias de viagem, Finarfim. - Disse Vallen.
- Mas seria muito mais sensato, amigo. - respondeu Finarfim.
Vallen, que já havia pensado na hipótese de encontrar os orcs no caminho, na verdade esperava que isso acontecesse. Era a oportunidade perfeita para testar a capacidade de Laucian e ensinar Finarfim a ser mais sorrateiro.
- Concordo que seria menos arriscado, Finarfim, mas nós teremos uma viagem muito complicada pela frente se não formos capazes de sequer passar desapercebidos por um acampamento orc. Eles não conhecem a floresta, são barulhentos e burros. - Argumentou Vallen. - Mas minha opinião é apenas mais uma nesse grupo, o que me diz Laucian? Você os viu de perto.
- Senhores, vocês que conhecem a floresta, por isso mantenho a neutralidade. Os orcs são muitos e isso representa perigo, mas também pode nos servir como vantagem se quisermos passar despercebidos.
- Então apesar de querer se manter neutro, acha que é uma boa idéia seguir nossa rota original, não é isso? - Pressionou Vallen.
- Bom… Confesso que tenho pressa em regressar e um desvio de três dias é algo complicado. - Confessou Laucian.
- Algum último esperneio, Finarfim? - Começou Vallen.
- Sim, algo me incomoda. Os orcs raramente entram na floresta e isso é algo bem curioso. Tenho a impressão que algo estranho está acontecendo e não gostaria de encontrá-los. - Disse Finarfim olhando cabisbaixo para sua gata que miou em resposta tão prontamente que todos poderiam jurar que havia inteligência no animal.
- Está me dizendo que a presença de orcs na floresta é inédita para vocês? - Estranhou Laucian.
- Não exatamente inédita… - Começou Vallen.
- Mas é rara, bem rara. - Terminou Finarfim. - Contudo, eu sou minoria. Vocês dois decidem.
- Finarfim, sei que é a primeira vez que você deixa a floresta, mas deve entender que muitos farão parte de nossa viagem. - Disse Vallen em um tom quase paternal.
- Não consigo compreender sua lógica, Vallen, na cabana de Shilmistra você disse que não considerava sensato correr riscos desnecessários, no entanto, agora você diz que três dias de viagem não valem a pena para evitar um confronto com orcs. - Disse Finarfim, lançando sua cartada final.
- Não é apenas lógica, Finarfim, está é uma oportunidade perfeita para testarmos nossas habilidades. Além do mais, não haverá confrontos se formos cuidadosos. E se por acaso formos pegos, farei piruetas nu para que corram atrás de mim enquanto você se esconde. - Disse Vallen, que apesar de fazer piadas, nunca perdia o semblante de seriedade.
- Espero realmente que isto não seja necessário, jovem Vallen. - Riu Laucian, acompanhado por Finarfim.
- Finarfim. - Chamou Vallen, interrompendo os risos. - Não sou seu dono, sou seu companheiro. Se estiver com medo de seguir por nossa rota original eu o seguirei por três dias adicionais pelo norte, mas não se esqueça, há perigos na floresta além dos orcs. Os bosques são ariscos longe da vila. O que vai ser, Finarfim, com medo pelo norte ou seguiremos como verdadeiros elfos sem medo de andar na terra que nos pertence? - Brincou Vallen.
- Você tem razão. - Concordou Finarfim enchendo-se de confiança. - Estou apenas receoso pelos orcs e por nunca ter saído da alcova. Pelo caminho mais breve!
E partiram enfim. Três elfos e um gato.
*  *  *
Mantenham olhos e ouvidos atentos e seus pés leves. Estas foram as palavras de Vallen quando encontraram os primeiros rastros de folhas arrastadas formando uma trilha, contudo seus esforços não eram bem recompensados. Era quase impossível se locomover pela floresta no início do outono sem que as folhas secas os denunciassem. Vallen liderava a fila indiana seguido por Laucian, Finarfim e Myra, como Finarfim batizara a gata que o seguia.
Um estalido alto e oco reverberou pelo silêncio da floresta. Finarfim tentara subir em uma raiz que estava no caminho e descobrira que na verdade se tratava de um grande galho apodrecido. Com os olhos dos outros dois elfos fulminando-o ele gesticulou um pedido de desculpas. Vallen concentrou-se em sua audição, qualquer barulho de passos significaria que alguém tinha notado a presença deles. O que conseguiu captar, no entanto, foi um longe e apagado som de metal contra metal. O som de uma batalha. Ao que parecia apenas ele tinha conseguido captar o som. Sabia que a melhor alternativa era ignorar seus ouvidos e sair dali o quanto antes, mas sempre fora curioso. Estendeu sua mão espalmada para que seus companheiros não o seguissem, preparou uma flecha e deixou que suas orelhas pontiagudas indicassem o caminho.
O caminho estava mais livre da vegetação morta e era mais fácil ser silencioso, porém, aquilo significava que um grupo grande passara por ali. Os sons de batalha estavam altos e pode dar-se ao luxo de apressar seus passos e espreitar o que acontecia de trás de uma árvore. Notou, antes de mais nada, que Laucian estava seguindo-o e gesticulou para que ele se aproximasse pelo caminho oposto, de modo que um não acabasse entregando o outro, caso fosse descoberto. No centro dos dois, três orcs lutavam contra um elfo de cabelos negros e curtos e mais dois orcs divertiam-se olhando o combate. O elfo portava uma espada longa, um escudo de madeira reforçado e usava um camisão de cota de malha. Os três orcs e um dos que os observava tinham o torso desnudo, vestiam calças de couro marrom e pelos e empunhavam em uma mão machados do tamanho de suas cabeças. Apesar da força bruta dos orcs tornarem seus golpes letais, o elfo tinha movimentos ágeis e precisos o suficiente para se manter vivo por mais alguns instantes. Laucian e Vallen perceberam que não havia como o elfo sair daquela situação sozinho.
A primeira flecha foi de Vallen, mas seus pensamentos estavam na promessa de piruetas sem roupa que havia feito e sua flecha errou o alvo. Voltou tão rápido quanto pode para trás da árvore que lhe dava cobertura, de modo que os orcs não soubessem de onde viera a flecha, uma tática básica entre os elfos. Laucian sacou sua besta e cravou um virote na nuca de um dos orcs que lutavam, que teve tempo de tatear sua nuca antes que caísse morto. Laucian não tivera o mesmo cuidado que seu companheiro e agora os dois orcs que assistiam a luta corriam em um frenesi na sua direção. Um dos orcs que partira em investida parecia ser o líder do bando, vestia um corselete de couro e empunhava um grande machado de guerra com as duas mãos. Vallen preparou sua flecha para estagnar o avanço dos orcs contra seu companheiro, mas um dos orcs derrubara o elfo desconhecido com um golpe na perna e o o outro orc certamente lhe exporia os miolos agora que o elfo abaixara a guarda. Tencionou seu arco o mais forte que pode e suas duas flechas deram conta do recado, a primeira acertou o punho fazendo com que o humanóide monstruoso largasse o machado e a segunda o deixaria caolho, caso fosse imortal. Ainda no chão o elfo emboscado conseguiu cravar sua espada no estomago do orc e, a julgar pelo ângulo da penetração e pela reação estática do orc, conseguira atingir também seu coração.
Laucian teve tempo o suficiente para parar o orc mais próximo, não fora um tiro exatamente letal, mas seu alvo se contorcia no chão com um virote no joelho. No entanto, uma besta não era um arco, e ele não teria tempo de carregar sua arma a tempo. O próximo ataque o acertaria em cheio se ele não fosse rápido o suficiente.
Finarfim, que começara a andar lentamente na direção em que Vallen fora, finalmente escutara os gritos e atritos da batalha. Correu o mais rápido que pode, com medo do que pudesse ter acontecido com seus companheiros. Quando suas pernas conseguiram lhe levar ao centro da ação e seu cérebro conseguiu processar tudo o que acontecia, estava encarando um orc com quase o dobro de seu tamanho. Vallen, que correra em busca de um bom ângulo para finalizar o orc, notou que os olhos do orc abandonaram seu alvo anterior e se fixaram nas pupilas e cabelos verdes do elfo. Por um momento menor do que um segundo todos ficaram atônitos, alguns com o súbito cessar da investida orc. Levantou seu machado e partiu em fúria na direção de Finarfim, que, percebendo que não teria chance caso resolvesse enfrentar seu oponente com sua espada, recorreu ao poder que sempre o acompanhou. Uma energia maligna e necrótica foi sentida por todos os presentes enquanto a pupila em fenda de Finarfim se abria e fixava-se no orc, deixando os olhos do elfo em um verde intenso. No momento seguinte o orc largara seu machado no chão e correra como se tivesse experimentado a sensação mais horripilante de sua vida. Mas não correu muito, pois as flechas de Finarfim e o virote de Laucian puseram-no no sono eterno.
*  *  *
Vallen ligara os pontos. Caminhou até Finarfim.
- Tenho fortes motivos para acreditar que esses orcs estão atrás de você. - Sussurrou-lhe.
- Por quê? - Respondeu Finarfim, confuso.
- Conheço o olhar de um homem com uma missão e sei que eles não estão aqui para uma guerra, e sim em uma missão de busca. Vou te explicar melhor mais tarde, longe dos ouvidos de Laucian. Apenas tenha em mente que se encontrarmos mais deles. - Disse enquanto removia e limpava a flecha da carcaça de um orc abatido. - Você provavelmente vai ser o alvo. Vamos ver quem é que salvamos.
Laucian estancara os ferimentos do homem e o ajudava a se levantar.
- Finarfim. - Disse o estranho, com uma careta de dor. - É você?
- Olá Galarin. - Cumprimentou Finarfim, reconhecendo no elfo uma das crianças que tanto lhe perturbavam durante sua infância. - O que está fazendo aqui?
- Estava fugindo. Os orcs tomaram meu vilarejo, mal consegui escapar com vida. - Respondeu Galarin com a voz quase trêmula.
- Não se preocupe, irmão, cuidaremos de você. - Acalmou-o Finarfim.
- Obrigado a vocês por me salvarem. Peço desculpas a tudo que te causei no passado. - Disse enquanto olhava nos olhos de Finarfim.
- Consegue andar? - Interrompeu, com urgência, Vallen, pensando na rasteira que o elfo tomara.
Galarin apoiou-se sobre a perna ferida e testou alguns passos.
- Dói um pouco, mas não será um problema.
- Somente estes cinco te seguiram? - Interrogou Vallen, com velocidade.
- Eles não me seguiram, consegui despistar os que estavam na cidade. Esses daí eram um grupo de patrulha.
- Precisamos sair logo dessa floresta. - Disse Vallen virando-se aos seus companheiros.
- Precisamos voltar para a Alcova e avisar Khalid. - Suplicou Finarfim.
- Não ache que ele já não está a par desta situação, Finarfim, é tolice de sua parte. - Repreendeu Vallen, começando a se irritar pela demora do grupo em sair dali.
- Eu… - Começou Galarin, buscando coragem para as palavras. - Gostaria de lhes pedir ajuda.
- Ajuda para quê? - Exaltou-se Vallen.
- Eles capturaram Lyanna. - Respondeu Galarin, mais para Finarfim que para o restante.
- E você quer que enfrentemos os orcs para salvar sua namorada. É isso mesmo que você quer nós pedir, Galarin? - Disse Vallen, agora tão ríspido que parecia querer recomeçar o combate.
- Nós precisamos ajudá-la. - Disse Finarfim, firme.
- Há uma passagem secreta que os orcs desconhecem. Ela leva até muito próximo de onde os prisioneiros estão sendo mantidos. Podemos entrar resgatá-la e voltar. - Disse Galarin, ignorando a hostilidade de Vallen.
- Sabe, Galarin, começo a pensar que a melhor ajuda que eu poderia lhe oferecer seria te socar até que você desmaiasse, te levar inconsciente para longe daqui e te impedir de desperdiçar a vida que acabamos de salvar. - Continuou Vallen.
- Vocês são bastante rudes com seu próprio povo, não? - Disse Laucian, fazendo com que Vallen o olhasse com sua peculiar expressão analítica.
- Eu sou uma exceção, Laucian. Uma exceção que tem o hábito de sobreviver à ataques orcs.
- Desculpe-me, arqueiro, sei que peço muito, mas não posso viver sem ela.
- Precisamos salvá-la. - Repetiu Finarfim, quase como um mantra.
- Você precisa salvá-la? - Zombou Vallen.
- Sim. - Respondeu Finarfim com uma confiança que não lhe era comum.
- Dê-nos um momento. - Pediu Vallen e arrastou Finarfim alguns metros de distância.

- Você entendeu o que eu lhe disse quando te falei que você provavelmente é o alvo, certo? E agora você está querendo ir no meio da cidade tomada. Na boca do leão? - Perguntou Vallen utilizando o tom mais calmo que conseguia.
- Lembra das poucas vezes que te falei sobre minha infância?
- Sim.
- Ela era a única que me ajudava.
Vallen suspirou. - Isso é um risco desnecessário, tem certeza que vale a pena?
- Tenho.
- Então vamos.
Laucian aproximou-se deixando Galarin para trás.
- O que está havendo?
- Finarfim quer ajudar. O que você acha disso? - Respondeu Vallen, aguardando a reação de Laucian
- Ora, qual o problema com esse tal de Galarin, vocês não são um só povo afinal? - Respondeu Laucian, fazendo com que as engrenagens na cabeça de Vallen funcionassem a todo vapor.
- Nós iremos ajudá-lo, vamos discutir nossos planos na segurança das árvores. - Disse Vallen enquanto apontava para os galhos mais altos.
- Eu não subo com facilidade nas árvores, não haviam muitas com as quais pudesse praticar na cidade. Galarin disse que a passagem secreta é desconhecida pelos orcs, podemos discutir lá.
Aquela era a pista final, pensava Vallen. Achara estranho que um grupo de orcs não tivesse conseguido seguir um elfo com um ferimento na perna tão profundo que fizera o elfo desmaiar. Achara curiosa a história de um mercador tão pretensamente honrado, a ponto de falar em recuperar corpos de mercenários. Não entendia por que raios um elfo iria preferir uma besta a um arco, todos os elfos usavam arcos. Começou a suspeitar quando viu que Finarfim era o alvo e que Laucian argumentara para que eles fossem em direção ao perigo sem ter nenhuma razão que lhe beneficiasse. Por duas vezes utilizara expressões que demonstravam como ele não se considerava um membro do povo élfico das florestas. E agora, revelava que não subia em árvores com facilidade. Uma frase que dificilmente seria dita por qualquer elfo, afinal tinham uma agilidade nata.
Seus anos como um filho das sombras o ensinaram a sempre suspeitar de tudo e principalmente de todos. Agora suspeitava que Laucian não era quem dizia ser. Suspeitava até mesmo que pudesse estar a serviço do inimigo.
- De acordo. - Disse Vallen. - Discutamos na passagem secreta. Vamos, guie-nos Galarin, irei tomar a retaguarda desta vez.
E partiram.

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