11 janeiro 2012

Relato de sessão - Capítulo 0: histórico




Esconda-se nas sombras.
Essas foram as últimas palavras ditas ao pequeno elfo por seus familiares.
Aquele por do sol representou o fim de uma série de eventos que tornariam os elfos conhecidos por sua intolerância com os povos de fora e o início de uma cadeia de eventos ainda mais obscuros.






I

Considerando a floresta como o seu lar sagrado, os elfos controlavam a entrada e saída através de freqüentes patrulhas. Os “espinhos da fronteira” eram um grupo de elfos altamente treinados para repelir qualquer um que adentrasse a floresta sem a permissão do conselho. Por séculos este comportamento foi tolerado pelas demais raças como apenas mais um fricote élfico. Nas últimas décadas, entretanto, cidades ascenderam à condição de reinos e estes tinham uma insaciável fome pelo progresso. Dizia-se que se os homens não guerreassem tanto entre si já poderiam ter tomado todo o continente. Os humanos eram brutos e cruéis com qualquer coisa que se interpusesse em seu caminho. E assim foi com a floresta élfica, cujo norte tinha o formato geográfico de um chifre. A “chifrada élfica”, como diziam os mercadores, acrescentava vários dias de viagem por um terreno acidentado, atrasando e onerando as relações comerciais entre as cidades a leste e oeste. Diversas foram as tentativas de negociação para que fosse aberta uma trilha na floresta ou que fosse concedida uma autorização aos mercadores para cruzar a área. Por fim o ouro falou mais alto e um grupo de nômades mercenários foi contratado para se livrar do problema. A “horda” era um grupo perigoso e por muito pouco não obteve êxito em sua empreitada. Os elfos sempre foram inteligentes e conseguiram perceber que os mercenários eram movidos pelo dinheiro de poderosos, mas não compreendiam por completo as redes de intrigas que acobertavam e habitavam as cidades humanas. Na ausência de um rosto a por a culpa a retaliação élfica, que deveria ser focada e dura, se limitou a um fortalecimento de sua xenofobia. Os espinhos da fronteira se tornou um grupo letal e somente os mais corajosos e loucos adentravam na floresta.

II

Os vigilantes da fronteira já haviam dado o aviso, mas os invasores se deslocavam em uma velocidade nunca esperada para um povo que não estivesse em sintonia com a floresta. Quando os quatro elfos, que constituíam uma família, fugiam para o abrigo, o mais antigo sacou seu arco e pôs em prática seus muitos anos de prática. O tempo gasto dando a ordem para que sua mulher e seus dois filhos continuassem a correr foi mais longo do que o necessário para parar dois de seus perseguidores. O movimento fluía naturalmente. Puxada suave, mas rapidamente da aljava com a ponta dos dedos em um movimento curvado. Apoiada nos dedos da outra mão e tencionando a linha do arco em um movimento perfeitamente reto. Abandonando o corpo único que arco e arqueiro se tornaram em uma parábola que atingia algum ponto vulnerável exposto pela armadura. Um goblin caído. Um orc. E outro. E outro. E outros tantos. Quando a distância tornou-se crítica duas espadas leves e letais como quem as empunhavam iniciaram um trágico espetáculo que demorou apenas o tempo necessário para que seus entes queridos chegassem ao lar, protegidos pelos melhores arqueiros e espadachins que o mundo haveria de ver. Isto deveria bastar. Tinha que bastar.
* * *
    Anariel, a mãe dos dois elfos, chegara a sua casa. Via que seus companheiros lutavam bravamente e achava que se alguém conseguiria deter os invasores, seria o seu clã. Com um beijo na testa tão carinhoso como somente as mães que se vêem forçadas a abandonar suas crias consegue dar, ela se despediu de seus filhos.
- Se escondam na sombra, não importa o que aconteça.
E os direcionou ao melhor esconderijo que conseguiu pensar dentro de sua casa.
Lá fora ela mantinha suas flechas em seus inimigos, mas seus olhos ocasionalmente se dirigiam a porta de sua casa, o que diminuía sua capacidade combativa. Por fim, quando percebeu que a derrota era iminente, correu até seus filhos, os levaria até a aldeia do próximo clã ou se esconderia na floresta, não se decidira. Na confusão de seus pensamentos não percebeu o gnoll e os orcs que a seguiam.
Os pequenos viram com alegria e esperança quando sua mãe retornara e quase desobedeceram sua mãe. O combate aconteceu diante dos olhos dos meninos. Anariel era uma guerreira quase tão boa quanto o seu marido, mas tinha os números como desvantagem. Quando o gnoll finalmente resolveu entrar no combate, após a morte de um dos orcs, seu machado fincou-se na coluna da mulher como uma lâmina que encontra uma madeira resistente demais para quebrar-se em um só golpe. Em um misto de desespero e instinto de proteção pelo irmão mais novo, Garionn correu até outro aposento sem ser visto e voltou com alguns frascos. Notou que o gnoll não estava mais na casa mas que os orcs ainda cravejavam lanças no corpo de sua mãe. Atirou os vidros de surpresa contra os orcs com um grito enfurecido e recuou. Na confusão os orcs tropeçaram no cadáver e bateram na mobília. O fogo percorria seus corpos como uma amante em frenesi, devia haver alguma substância especial naqueles frascos que produzia um fogo mais forte que o normal. Quando os orcs ajoelharam-se no chão, agonizando, Garionn se aproximou com um estranho sorriso fechado e torto no rosto. Um sorriso que seu irmão nunca vira e nunca se esqueceria. Atirou outro frasco na face de um deles e aproveitou o espetáculo. O fogo começava a reivindicar partes da casa para si e Garionn escutou quando a voz gutural de outros inimigos se aproximou da casa. Virou-se uma última vez para onde seu irmão menor estava.
- permaneça nas sombras, irmãozinho, vou atraí-los. Quando achar que é seguro fuja daqui e faça isso antes do fogo te prender. Fuja sempre pelas sombras.
E correu com seus frascos e a expressão de fúria.
* * *
Vallen esperou no baú que sua mãe e irmão lhe deixaram até que fosse seguro sair. As chamas não pareciam estar tão próximas e ele conseguia converter seu choro desesperado em lágrimas involuntárias. Esperou até que não ouvisse mais gritos. Até que não ouvisse mais vozes. Até que não ouvisse mais passos próximos. Até que, pela falta de ar, adormeceu.
* * *
As vozes o acordaram. Uma fria e suave, outra ríspida e autoritária.
- O ataque foi um sucesso, mas não venceremos os reforços. Peça a seus homens que apressem-se com a pilhagem, iremos recuar. - disse friamente.
- meus homens não recuam e ninguém voltará aqui. Provavelmente estes covardes apenas esperarão por nós com seus frágeis arcos. - disse rispidamente.
- Arcos estes que deitaram metade de seus homens. - zombou com a suavidade necessária para não ofender o outro.
Vallen ouviu passos aproximando-se do baú e preparou o presente que seu pai lhe dera a menos de uma semana. Uma pequena adaga que para o garoto servia como uma espada.
- não tenho interesse em me demorar aqui. Tenho fome e desejo pelas sobreviventes. - disse, aceitando o argumento do outro. - apressem-se e recolham o que tiver valor por aqui.
Quando o baú se abriu Vallen avançou na garganta esverdeada do orc como uma cobra no bote. Enquanto o orc sufocava e tentava prender seu sangue com as mãos o garoto correu em direção a porta. Driblou um dos orcs e passou pelas pernas de outro. Parados na porta, estavam os donos das vozes que o acordaram. Um orc diferente dos demais, era magro, apesar de aparentar força, não tinha cicatrizes aparentes e possuía uma armadura negra repleta de cravos. Seus olhos tinham cores diferentes. Um era vermelho como os demais orcs e o outro tinha um azul de alguma forma maligno que passaria a habitar os pesadelos de Vallen por toda sua vida. Ao lado dele, um elfo como o garoto jamais vira. Tinha a pele totalmente enegrecida, o cabelo longo e branco derramado pelas ombreiras do corselete de couro negro. Tinha um aspecto nobre e um sorriso debochado na face.
- fim da linha, garoto. - Disse o elfo.
O orc a sua frente chutou-lhe o peito. A força do impacto da bota de metal arremessou garoto para trás e lhe tirou o ar. O garoto tentou um giro para cair com as mãos no chão, mas só conseguiu quebrar o nariz ao bater a cara no chão. Aproveitando-se da queda do garoto, um dos soldados desceu o machado no chão, certamente abriria seu peito se o garoto não tivesse rolado para o lado. Levantou-se e correu para a janela. Em um salto que já dera tantas outras vezes, apesar das broncas da mãe, apoiou-se na mobília e conseguiu alcançar a janela. Via o caminho lá fora, conseguiria fugir. Mas algo o segurou. Tentou desvencilhar dos braços que o seguravam no ar, mas percebeu que não tinha nenhum. Girou e encarou o elfo com a mão estendida em sua direção, magicamente segurando-o no ar.
- Agora chega, pequeno elfo, durma. - disse em um tom tão amigável que poderia ser o de seu pai.
- Passe-o pra cá. Ele matou um dos meus. - disse o orc na armadura negra.
- um dos seus morreu porque foi imprudente, não acredito que vai culpar uma criança desse tamanho pela morte de um guerreiro da Horda. - disse o elfo negro, a mais de um metro de distância, fazendo a criança levitar até seus braços. - Além do que, eu conheço alguém que faria bom uso desse menino. Considere que esta é a minha pilhagem pessoal.
III
Não demorou muito para que Vallen entendesse que teria que se adaptar se quisesse sobreviver. Fora vendido a algum tipo de organização que o treinava duramente. A tristeza e a memória que vieram com aquele por do sol nunca o abandonaram, mas com o tempo passou até mesmo a considerar os “filhos da sombra” como uma família. Havia outros em situações parecidas com a dele, vindo de diversos lugares. Já tinha percebido que aqueles que se demoravam no luto ou que se recusavam a cooperar acabavam desaparecendo, e ele tinha alguma idéia do que acontecia. Fez amizade com Raeonar, um membro do povo felino que tinha a mania de fazer o tempo correr com as histórias de sua tribo e seus jeito hilariante.
Vallen gostava do lugar e, apesar de se ver como uma espécie de prisioneiro, gostava dos ensinamentos. Aprendeu a ser silencioso como uma sombra e uma série de truques para entrar em um lugar ao qual não fora convidado. Havia, também, um treinamento na luta das sombras. Raeonar apelidava este treinamento de técnicas para quando se é pego, mas conforme as lições se tornavam mais avançadas, com estudos da anatomia e os melhores lugares para se enfiar uma faca, ou como se assassinar alguém sem que a pessoa sequer perceba que perdeu a vida, Vallen foi percebendo aonde tudo aquilo desembocaria, e ai começaram a surgir idéias de fuga.
Até que seu tempo começou a se dividir entre estudo, treino e missões. Inicialmente suas missões eram fáceis e até parecia que tudo ainda era um treinamento. A esta altura já havia descoberto de onde tinha vindo, mas ainda hesitava quando pensava nas conseqüências que poderiam lhe ocorrer se tentasse fugir da irmandade. Até que o dia que ele temia se apresentou. Tinha recebido, juntamente com Raeonar,  missão de assassinar um político em ascensão. Entraram pelo telhado removendo as telhas e chegaram no quarto onde o alvo e sua esposa dormiam. Parecia tudo muito fácil, mas a missão já se prolongava por dias de planejamento e horas de infiltração. Aproximaram-se da cama e trocaram um olhar confuso. Raeonar sabia do coração bondoso que possuía o elfo e desde o início achou que ele não seria capaz. O homem gato sacou sua adaga. Aço enegrecido, lâmina afiadíssima. Uma arma que devia ser usada para evitar lutas, não para ganhá-las. Aproximou a adaga do pescoço do homem. Foi então que Vallen escutou passos leves, mas descadenciados vindos do quarto ao lado. Apoiou-se na parede e colocou um pequeno espelho no chão, de modo a ver quem se aproximava. Uma criança, 6 anos de idade no máximo. Vallen ficou estático. Estava prestes a dar um destino semelhante ao seu a outra criança inocente.
Gestuou para Reonar o que acontecia, sabia que tinham de tomar uma decisão logo. Quando seu companheiro avançou o punhal em direção ao peito do homem, Vallen segurou seu braço. A movimentação acabou por acordar o homem e sua mulher, que logo começou a gritar. Com um solavanco Raeonar livrou-se de Vallen e o empurrou para longe. Perdera sua faca no processo, mas havia outros meios de terminar o serviço. Com um salto de impressionar qualquer predador, debruçou-se sobre o homem e silenciou-lhe a garganta com seus dentes afiados. Percebendo a movimentação da mulher e tentando evitar sua morte, Vallen a segurou e a arremessou para a porta. Foi quando notou que a criança presenciava todo o ocorrido, estarrecida e imóvel, na porta.
* * *
Vallen tinha trazido seus pertences escondidos em sua bolsa. Como sabia que era provável que aquilo acontecesse hoje, furtou um dos livros de ensinamento que ainda lhe era proibido. Achou que precisaria continuar melhorando mesmo que não tivesse mais um professor. Esperava que a irmandade não levasse para o lado pessoal, havia outros como aquele.
- eu sei o que acontece agora. Não vou te impedir. - apesar de tanto tempo de convivência, Vallen ainda achava engraçado o jeito como o felino pronunciava o R, quase um ronronar.
- Talvez um dia nossos caminhos se cruzem novamente, amigo gato. - riu nervosamente Vallen. E pulou do telhado enquanto se agarrava em uma corda.
-só espero que você não tenha que ser meu rato. - disse baixo e com uma expressão de profunda tristeza. - meu amigo.

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