24 janeiro 2012

Capítulo 3




Se aquela fosse apenas uma caminhada pela floresta talvez não estivesse tão cansado, mas a tensão de que a qualquer momento poderiam ser avistados por alguma patrulha orc e o pensamento de que Laucian talvez fosse um traidor deixavam suas marcas no humor de Vallen. Caminhavam desde as primeiras horas da manhã e agora tinham a luz das estrelas e da lua sobre suas cabeças. Notou que Laucian não se locomovia tão bem sem a luz do dia, por vezes tropeçando como se tivesse a visão fraca de um humano, e se perguntou até que ponto poderia atribuir isso ao fato dele ter crescido nas cidades. Conhecera outros elfos criados na cidade e até alguns meio elfos, ou mestiços, como eram mais conhecidos, e todos eles tinham a vista aguçada de uma coruja. Suas suspeitas e os crescentes raciocínios que lhe acompanhavam começavam a deixá-lo com uma pulsante dor de cabeça.




- Quanto tempo até essa passagem, Galarin. - Perguntou Vallen, em um tom visivelmente irritado.
- Já podemos avistá-la daqui. - Respondeu o elfo ferido enquanto apontava para um desnível no solo alguns metros a frente.  - Se você souber para onde olhar.
O desnível mostrava-se um obstáculo a ser respeitado. Uma inclinação íngreme e rochosa do tamanho de um elfo e meio coberta de muito limo e em alguns pontos limo entrelaçado em trepadeiras. Contornaram-no e Galarin afastou as trepadeiras em um ponto mostrando uma entrada oculta para uma caverna.
Pisavam em terra fofa, escura e fria e respiravam um ar abafado e úmido. Poucos metros adentro, Finarfim acendeu um lampião semi fechado. Todos se incomodavam com a escuridão crescente, mas foi Laucian quem anunciou seu incômodo com as sombras cegantes. Com a luz puderam ver o que seus outros sentidos falharam em anunciar. O maior lobo que qualquer um dos presentes já havia pousado os olhos encarava os intrusos com mandíbulas arregaçadas. O rosnado começou a ressoar grave e poderoso tão logo o fogo do lampião tirou a vantagem da surpresa da fera. A criatura pôs-se de pé revelando ser tão grande quanto um jovem cavalo. Três filhotes de lobo olhavam curiosos para os humanóides agora que o corpo de sua mãe não mais os escondia.
- Apenas recuem devagar. - Sussurrou Finarfim.
- Essa caverna foi uma péssima idéia. - Reclamou Vallen.
Começavam o retorno quando a gata que os seguira começou uma despretensiosa caminhada rumo à morte certa. O lobo rosnou ainda com mais fúria enquanto myra se aproximava. Vallen duelava mentalmente entre o impulso de advertir Finarfim a não tentar salvar a gata atraindo a fúria da loba para todos e a vontade de ele mesmo salvar o animal indefeso. Então myra soltou um fino miado e roçou o corpo nas patas dianteiras da besta. A expressão assassina na loba desfez-se. Soltou um resfolego pelo nariz e tornou a se deitar, apenas observando o grupo, desta vez sem nenhuma ameaça. Finarfim foi o primeiro a tentar a travessia. Um a um todos pressionaram seus corpos contra a parede oposta ao animal, tentando manter a maior distância e calma possível. Galarin foi o último e podia-se ver em seus olhos que o medo fazia com que se arrependesse do caminho que escolhera.
Enquanto avançavam pelo túnel, discutiam o quão seguro seria descansar naquele túnel. Finarfim e Laucian diziam que o lobo poderia ser um problema caso precisassem fugir. Vallen dizia que o lobo poderia guardar uma das entradas da caverna e que provavelmente não avançaria no breu total da caverna e que, se assim o fizesse, o fogo do lampião talvez o mantivesse afastado. Continuaram a discussão até que Vallen achou ter visto algo muito adiante. Somente um elfo conseguiria enxergar tão longe com uma fonte de luz tão fraca, e com essa esperança pediu que invertessem a direção do lampião que carregavam. Pediu silêncio e que esperassem ali e começou a avançar lenta e sorrateiramente.
Um elmo e uma espada pareciam flutuar mais adiante, seus traços pareciam de forja élfica. Aproximou-se mais um pouco e notou que o equipamento na verdade não flutuava, e sim boiava em algum tipo de líquido gosmento mas translúcido como água. A arma e a gosma começaram a se mover lentamente em sua direção. Correu até seus companheiros e tentou explicar o que vira, algum tipo de magia que se aproximava. Não foi preciso que explicasse com riqueza de detalhes pois o que quer que fosse aquilo, estava se aproximando mais rápido. Os elfos atiraram o mais rápido que puderam e quando perceberam que suas flechas penetravam o líquido apenas para dissolver-se logo em seguida perceberam o perigo. Poderiam correr mais rápido do que aquela coisa, mas seriam forçados a passar pelo lobo mais uma vez e não estavam dispostos a abusar da boa vontade do animal.
Começaram uma estratégia comum aos elfos da floresta. Flechas precisas e passos rápidos mantendo a distância a seu favor. Quando as flechas começavam a espirrar a gosma em várias direções fazendo com que o volume da coisa diminuísse aos poucos, pensaram que não teriam maiores problemas, contudo, a coisa ganhou velocidade conforme diminuiu e aproximava-se de Finarfim. Desesperado com o súbito avanço do líquido, Galarin errou uma de suas flechas perfurando a omoplata esquerda de Finarfim.
- Maldito seja, Galarin! - Gritou Vallen. - Se não consegue usar seu arco em momentos de perigo não o use nunca!
Finarfim gritara de dor e, na tentativa de conter o sangramento com a mão, diminuíra a velocidade de seus passos. Valen, que correra mais depressa que os demais, estancou a corrida e procurou algo em sua mochila. Rapidamente desenrolou seu saco de dormir de forma a ocupar mais espaço e o deixou no chão. ainda ajoelhado preparou outra flecha e mirou nos objetos que boiavam.
- Use o lampião para atear fogo no saco de dormir! - Comandou Vallen para Laucian, que seria o primeiro a passar por ele. - Talvez consigamos parar o avanço dessa coisa. - E tornou a flechar.
Podiam lhe faltar muitas características de um elfo das florestas, mas Laucian era, sem sombra de dúvidas, ágil como somente os melhores de sua raça conseguiam ser. Vallen esperava que o fogo se impusesse como obstáculo somente depois de todos seus companheiros tivessem passado, mas Laucian conseguiu entornar parte do óleo do lampião fazendo com que o fogo se alastrasse ferozmente. Finarfim conseguiu pular o fogo enquanto este batia-lhe apenas na altura das pernas, mas Galarin se assustou com o fogo que obstruía-lhe o caminho. Sacou sua espada e tentou um golpe direto na gosma. O líquido espirrou em uma raiz que brotava da parede. A planta dissolveu-se emitindo o som de uma serpente acuada. O muco avançou na direção do braço que o golpeou como se quisesse englobá-lo. Galarin percebeu o que poderia lhe acontecer e preferiu as chamas. Com um salto para trás no último instante conseguiu livrar o braço. Sentiu o fogo tocar-lhe os cabelos e as partes mal cobertas do torso. Apesar de não ter incendiado nada, suas mãos surraram as labaredas imaginárias de seus cabelos e calças.
- Finarfim, jogue o combustível do lampião no fogo quando essa coisa se aproximar. - Vallen estava mais calmo e firme. Se aquilo tivesse algum tipo de inteligência instintiva, não atravessaria o fogo. Seu plano daria certo.
Finarfim entretanto parecia não ouvi-lo. Diante do perigo iminente e do sangue que percorria quente as costas foi tomado pelo instinto de sobrevivência. Sentiu algo queimando-lhe os peito e subindo por sua garganta. Ninguém notou o leve brilho em seus olhos quando ele expeliu um pequeno jato esverdeado, que respingou nas mãos de Galarin antes de atingir seu alvo original. As gosmas se chocaram parecendo corroer-se mutuamente. Não se sabe se foi o virote de Laucian, que arremessou o elmo para fora da criatura, se foi o fogo alimentado pelo colchão de Vallen, que tocava o líquido quando aconteceu, ou se fora a magia de Finarfim. O que importava é que o líquido se espalhara pelo chão apagando o fogo e ora quase que imediatamente absorvido pelo solo. Os dois elfos trocaram pedidos de desculpa pelo fogo cruzado e Finarfim ofereceu outro de seus frutos abençoados, que fez com que as queimaduras pelo ácido na mão de Galarin se regenerassem. Finarfim precisou comer todos os seus demais frutos para fechar a ferida causada pela flecha em seu ombro, apesar disso ainda sentia dores.
Caminharam algumas dezenas de metros quando Galarin anunciou que tinham alcançado o meio da caverna. Apesar dos protestos de Vallen, que queria sair o quanto antes daquela caverna maldita, decidiram que passariam a noite ali. Laucian e Finarfim afirmavam não ter condições de continuar andando e que se houvesse outro combate estariam demasiadamente fatigados para se defender. Laucian preparou seu saco de dormir e começou a dormir antes de todos.
- Eu vou até a saída dessa caverna. - Anunciou Vallen. - Não vou conseguir descansar sem saber se há mais mucos assassinos perambulando pela caverna.
- Vallen, se você encontrar qualquer coisa vai estar encrencado. - Alertou Finarfim. - Descanse um pouco, temos o dia todo pela frente.
Vallen precisava compartilhar suas suspeitas com Finarfim, mas não conseguia encontrar uma hora ou local para fazê-lo. Podia jurar que ouvira Laucian emitir um ruído muito parecido com um ronco. Sabia que muitos elfos meditavam em posições tão confortáveis que pareceriam estar sonhando, mas Laucian estava de fato dormindo. E elfos não dormem, nunca.
- Por que não vem comigo, Finarfim. - Tentou Vallen, sutil.
- Não tenho condições de fazer mais nada hoje, companheiro, já lhe disse.
- Então apenas me espere, não vou demorar. - Acendeu uma tocha e começou a caminhar, irritado pelo jeito que as coisas estavam acontecendo sem muito planejamento.
- Eu vou com você. - Disse Galarin se levantando. - É perigoso ir sozinho.
- Prefiro que fique, Galarin, asseguro-lhe que sei me virar. Descanse.
- Mesmo assim, não é bom você ir sozinho.
- Gritarei como uma mulherzinha se precisar de ajuda, Galarin, fique e vigie o sono dos dois se está se sentindo tão disposto.
- Eu insisto em ir com você, companheiro. - Disse Galarin, com um sorriso cordial.
- Que seja então. - Respondeu Vallen, resignado e aborrecido. - Apenas seja silencioso e não me atrapalhe.
Percorreram mais dez minutos de caminhada quando avistaram o que parecia o portal de saída da caverna. Deixou a tocha ali de modo que a luz não os entregasse e se aproximou. A luz das estrelas revelavam presenças na saída da caverna. Pode contar seis orcs na saída, quatro deles dormiam. Pensou nas possibilidades do seis contra dois e seu braço doído pelo uso excessivo do arco o convenceu, teriam de voltar e talvez até mesmo sair da caverna. Uma movimentação atrás dele fez com que seu coração tentasse sair do peito, tamanho o susto. Galarin sacara sua espada e seu empunhara seu escudo, tinha o combate fixo nos olhos.
- Galarin, nós não vamos… - Começou Vallen.
Em um movimento inesperado Galarin golpeou o próprio escudo com a espada, fazendo com que o som de metal ecoasse por toda a caverna. Vallen amaldiçoou a vontade de combate de Galarin e tentou rapidamente pensar em algum plano quando finalmente percebeu o que estava acontecendo. Galarin aproveitara a confusão de Vallen e tentou expor as tripas de Vallen com um golpe. O elfo cinzento não teve tempo suficiente para evitar o golpe, mas conseguiu diminuir seu impacto. Aproveitou a movimentação ampla de Galarin em um golpe de cima a baixo visando sua cabeça, desviou-se do golpe e girou por sua lateral em um movimento quase acrobático. Correu o mais rápido que pode, diminuindo o ritmo apenas para pegar a tocha que ficara no chão.
Quando alcançou Finarfim e Laucian tinha uma flecha cravada nas costas. Precisou comer três de suas frutinhas enquanto corria após ter recebido a flechada de Galarin, o ferimento se fechara com a flecha dentro e ardia com a movimentação. Estava ofegante, mas reuniu o pouco de forças que tinha. Com um salto debruçou-se por cima de Laucian. Uma mão pressionava seu plexo solar para que não tivesse força para livrar-se com facilidade e a outra segurava uma adaga que mantinha o pescoço de Laucian esticado.
- Finarfim, prepare-se, inimigos estão vindo. - Disse Vallen bruscamente para o elfo de cabelos verdes. - E você, me escute bem.
- Muita… calma… - Disse Laucian tentando ele também manter a calma.
- Acabei de ser traído por uma pessoa que julgava com uma boa chance de ser confiável. Você é um elfo que dorme, tem dificuldades pra se locomover de noite e me deu uma dezena de motivos para perceber que há algo de errado com você. Poderia citar cada um deles, mas não tenho tempo. Ou você me diz o que há de errado com você ou eu vou seguir meus instintos e cravar essa lâmina na sua traquéia.
- Seja razoável meu jovem… Eu estava apenas dormindo aqui. O que há de errado com você? Ficou louco?
- Vallen o que está acontecendo? - Exasperou-se Finarfim. - Onde está Galarin?
- Eu não estou brincando, Laucian. - Sussurrou Vallen, ignorando Finarfim e fazendo com que um pequeno filete de sangue corresse pela lâmina negra de sua adaga. - Eu realmente vou te matar agora se não me falar o que eu preciso saber.
- Não há nada de errado comigo. - Disse Laucian contendo a irritação crescente. - Mas posso perceber que você está visivelmente alterado.
- Vallen, que porra de flecha é essa. - Falou Finarfim confuso sobre que ação deveria tomar.
- MEU JOVEM! - Gritou Laucian, com uma ira e propriedade que assustaram Vallen. - ARRANQUE MINHA GARGANTA FORA E MORRA COM A CONSCIÊNCIA PESADA OU SAIA DE CIMA DE MIM ANTES QUE EU PERCA A PACIÊNCIA COM VOCÊ!
Vallen afastou a adaga do pescoço de Laucian, mas manteve-se em cima dele. Laucian estava escondendo alguma coisa, sabia disso, mas seus instintos começavam a lhe dizer que não era um traidor. Estava prestes a desculpar-se quando uma seta perfurou seu já ferido abdômen, lhe tirando de cima de Laucian com violência.
Galarin aproveitara a confusão e já tinha outra flecha pronta para o disparo. Seis orcs vinham atrás dele.
- Desculpe, Finarfim. - Disse Galarin em um tom frio. - Mas preciso salvar Lyanna. Se vierem comigo pacificamente, ninguém mais precisa se machucar.
- Ele nos traiu, Finarfim, e estamos prestes a descobrir se Laucian também. - Gritou Vallen. Fuja, não se pode confiar em orcs e seus aliados.
Outra flechada em Vallen, que desta vez conseguiu desviar. Aparentemente Galarin queria eliminá-lo primeiro, pensou Vallen. Correu para trás juntamente com Laucian, buscando cobertura nas irregularidades da caverna enquanto iniciavam um duelo de arcos e bestas contra Galarin e os orcs. Finarfim, finalmente compreendendo a situação e sentindo o peso da traição de Galarin em seu coração, levantou-se e concentrou seu poder no elfo a sua frente. Seus olhos acenderam e na mesma hora Galarin pode sentir aquela energia maligna invadindo sua mente. Largou o arco no chão e correu em pânico.
- E vocês, orcs, querem morrer aqui? - Finarfim sentia seu poder enfraquecendo-se a cada vez que recorria e sentiu que não conseguiria depender dele enquanto não descansasse, tinha que blefar.
- Não somos frouxos como essa elfa. - Disse um dos orcs em um idioma que somente Finarfim pode compreender. Os demais orcs grunhiram suas risadas, dois deles avançaram em Finarfim, os demais mantiveram o fogo cruzado.
Finarfim não teve tempo sequer de lutar. Um golpe não letal com a lateral do aço do machado atingiu sua cabeça fazendo-o desmaiar. O outro orc o segurou antes que pudesse cair e fugiu por onde veio. Vallen fez menção de correr na direção de Finarfim, mas percebeu o quão idiota era a idéia e voltou quando um virote rasgou-lhe um pedaço da roupa no braço. Laucian conseguira acertar um dos virotes no peito de um deles. O outro orc avançou na direção de Laucian, que não podia ficar tão longe quanto Vallen, bestas não tem um alcance tão preciso quanto arcos. Laucian largou a besta e sacou sua adaga, desviou-se por um triz de uma machadada que mirava seu crânio e fincou a adaga no ombro do inimigo. Vallen aproveitou-se da distração, correu e perfurou a nuca do orc, matando-o. Continuaram o duelo a distância até que o outro orc fora atingido ao mesmo tempo pelos elfos, indo ao chão. O orc sobrevivente tentou a fuga, mas fora detido por uma flecha nas costas.
Cada movimento doía e Vallen pensou que desmaiaria a qualquer instante. o calor da batalha fez com que não sentisse suas feridas, mas agora a dor era insuportável. Puxou a flecha de seu abdômen e achou q ia morrer. Engoliu de uma só vez o que lhe restava dos frutos sagrados. A ferida se fechou, mas ele podia sentir que não conseguira recuperar o dano interno. Uma flecha ainda permanecia fincada em suas costas.
Vallen virou-se para Laucian e aguardou sua reação. Estava pronto a se justificar. Laucian retirou a adaga do ombro verde, limpou-a e a embainhou. Recolheu sua besta, recarregou-a, andou, deu um tiro a queima roupa em um orc caído, recarregou a arma e andou calmamente.
- Então, meu jovem. - Começou Laucian, em um tom tão calmo que nada parecia ter acontecido. - Quer me explicar o que estava acontecendo antes?
Vallen movimentou seus lábios para falar, mas parou no mesmo instante. Escutara sons de combate vindo da entrada da caverna, na direção da loba.
- Acho que vamos ter que esperar por outra oportunidade, ouço o som de batalha. - E correu.
- Eu devia era te abandonar aqui. - Disse Laucian quando Vallen se afastou correndo. - Maldito elfo. - E correu atrás de Vallen.

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